Revista Pensando Famílias
“Pensando Famílias” é uma publicação regular do DOMUS – Centro de Terapia de Casal e Família visando a divulgação de artigos inéditos referentes às áreas de casal e família. As modalidades dos trabalhos aceitos incluem artigos teóricos, relatos de pesquisa e casos clínicos, artigos de revisão e/ou atualização bibliográfica, resenhas e outros que serão submetidos para avaliação da Comissão Editorial, Conselho Editorial e Consultores ad hoc.
Textos, posicionamentos teóricos e ideológicos, contidos nos trabalhos propostos, são, unicamente, de responsabilidade do autor.
Pensando Famílias inicia uma nova periodicidade, seus lançamentos serão semestrais. Isto é resultado do processo de indexação da revista no indexador Index Psi Periódicos, o que nos dá imensa satisfação. É o reconhecimento oficial da revista como um veículo de divulgação da nossa produção científica. Temos como objetivo um contínuo processo de construção de um elo entre a teoria e a prática, procurando manter um canal de comunicação aberto tanto com os que escrevem, como com os leitores. Esperamos contribuir assim para o desenvolvimento do conhecimento em nosso complexo mundo das interações relacionais. Nesta edição, desejamos homenagear um homem que representou para muitos o exemplo de profissional sério, competente, questionador e de atitudes irreverentes: Gianfranco Cecchin. Sendo um inovador de idéias e formas de trabalho, conviveu com um grande número de pessoas de várias partes do mundo, mostrando como pensava e vivia. Apresentamos as palavras de algumas destas pessoas que tiveram o privilégio de conviver e aprender com ele. Mostramos um pouco mais deste profissional em um artigo onde Cecchin, Lane e Ray discorrem sobre os preconceitos que os terapeutas carregam consigo e que podem interferir no processo terapêutico. Escrevem sobre os rótulos que identificam as problemáticas encontradas, colocando aqueles que trabalham com saúde mental em uma situação bastante difícil. Por um lado, a proposta é ajudar, proteger, curar as pessoas, mas por outro, há um fator social importante, apontando para o controle e defesa daquele que não se enquadra no que é considerado como norma social. É sobre este dilema que os autores fazem suas reflexões.
Ana Maira Zortéa, inserida nos meandros de uma sociedade pós-moderna onde as informações se processam rapidamente e tendo sua vida profissional muito próxima do mundo infantil, expõe-nos suas idéias sobre a construção da aprendizagem nas crianças. Considerando a família e a escola como o espaço de maior inclusão das mesmas, estabelece relações entre as experiências das crianças e o elevado número de diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade.
Jorge Corsi, especialista no tratamento da violência masculina, escreve sobre seu trabalho com grupos de homens que exercem violência doméstica. Como fundamentação, utiliza uma forma de pensar diferente, partindo de uma base conceitual pró-feminista, buscando a responsabilização frente à violência e à mudança nas relações abusivas contra as mulheres.
Iara Camaratta Anton traz questões sobre a criação de vínculos, podendo estes serem construídos a partir de necessidades neuróticas do outro ou através de legados transgeracionais desfavoráveis. Refere que estar próximo do outro, não garante uma boa qualidade de vínculo, assim como estar distante, pode vir a ser um bom elemento para firmar a constituição vincular.
Patrícia Muller escreve sobre sua experiência em um atendimento de uma adolescente que, mesmo tendo desistido do tratamento após três sessões, foi atendida através de intervenções focais realizadas com o pai e a esposa deste.
Para tal, a autora utilizou o referencial sistêmico, com a perspectiva de que a mudança processada no sistema familiar, modificaria o comportamento disfuncional da adolescente.
Em seu artigo, Lirene Finkler aponta as possibilidades que o referencial teórico sistêmico apresenta para o desenvolvimento de intervenções que se fazem necessárias no atendimento de casais que convivem com o drama da AIDS.
Desejamos a todos uma boa leitura.
Helena Centeno Hintz
Nira Lopes Acquaviva¹
Ao retornar de férias neste mês de fevereiro (2004), recebemos a triste notícia da morte do Professor Gianfranco Cecchin, um dos Associados de Milão. A notícia surpreendeu a todos, pois ele estava em ótima forma, parecendo ter muito menos do que seus 73 anos, trabalhando regularmente e publicando com freqüência. Soube depois que a morte ocorrera em um acidente na auto-estrada no norte da Itália, possivelmente na ocasião em que Cecchin havia parado seu carro e descido para socorrer alguém.
É fácil informar-se sobre o pensamento de Cecchin, ele escreveu e publicou bastante. Nosso relato do curso-estágio em Milão em 2003, publicado no número anterior desta revista, pensado inicialmente como um simples relato de viagem, acabou incluindo referências bibliográficas, e pode servir como roteiro a quem quiser aprofundar-se mais sobre o pensamento de Cecchin e seu trabalho como psicoterapeuta. Desta vez minha intenção é colocar aqui alguma lembrança pessoal, algum registro de bastidores. No entanto, tive pouco contato com ele, para poder descrevê-lo em profundidade. O que vai a seguir vale apenas como um retalho, que junto a outros retalhos, poderá lançar alguma luz sobre o personagem. Pedi a outras três pessoas que escrevessem também suas impressões pessoais.
Destaco no Professor Cecchin a impressão de humildade que transmitia. Talvez se pudesse também chamar de discrição, modéstia, algo sutil: uma capacidade de impor-se sem chamar a atenção, sem ser intrusivo. Explico: era baixo, falava baixo, não interrompia quem estava falando, tinha um discurso sem palavras difíceis ou rebuscadas. Ao primeiro contato parecia colocar alguma distância, sorria pouco. Depois, esta impressão se desfazia. Reflito agora: alguém que conseguiu reconhecimento mundial por seu trabalho, deve ter batalhado e insistido para conseguir seu espaço e ser reconhecido, não era tão modesto. Contextualizando, talvez Cecchin nos chamasse a atenção por estas características, destacando-se, por contraste, de seu parceiro na Escola de Milão, Luigi Boscolo, um homem alto, forte, comunicativo, que impunha autoridade com sua simples presença.
Foram três as ocasiões em que tive contato com Cecchin. Em São Paulo, em 1996, na Brief Therapy Conference, em que estavam muitos terapeutas de família de renome internacional, Cechin trouxe uma fita de uma entrevista familiar (temática do filme “O Quatrilho”), com seu interrogatório circular lento, tenaz, cercando gradativamente cada membro da família e levando-o aos objetivos que perseguia, muito diferente dos movimentos espetaculares do show de outros autores.
Depois, Maria Lúcia Mendonça Coelho, psicóloga paulista que vivia em Monza, propiciou-me um contato com o Centro Milanese em 2001. Pediram-me um breve currículum, que enviei, e acabei passando na Escola três dias inteiros, participando das equipes atrás do espelho com os alunos regulares. Daquele período lembro bem o esforço ativo de Boscolo em cativar-nos, em contraste com a atitude, digamos assim, recatada, de Cecchin.
Da terceira vez, tenho as lembranças que definem mais claramente o Professor: em 2003, por ser uma semana inteira de atividades com cada um dos “Associados de Milão” e pela minha condição de organizadora do grupo de brasileiros, tive um intercâmbio mais ativo com ele, e ficaram-me alguns registros que, evidentemente, tem também muito a ver com minhas preferências pessoais: Cecchin preocupado em dar um conteúdo interessante a suas aulas numa tarde em que a família faltara, providenciando uma fita, aliás, interessantíssima, sobre uma família com um paciente sempre mudo em sessão, que só se comunicava com ele por carta. Cecchin oferecendo-nos uma reunião privada com nosso grupo em uma manhã em que não havia família marcada, proporcionou-nos uma aula informal de Escola de Milão, abrindo espaço para nossas perguntas, num ambiente absolutamente descontraído.
Outro momento em Milão 2003 foi uma entrevista familiar em que ele parecia provocar insistentemente o pai de uma família em entrevista. Frente às nossas perguntas, Cecchin repetiu-nos as vantagens do questionamento circular, que não impõe uma característica como imutável, mas como passageira. Para nós, do outro lado do espelho, parecia claro que o grande trunfo dele era seu olhar franco e suave, talvez malicioso e brincalhão, mas sem resquício de ameaça ou condenação.
Desses encontros ficou-me a impressão de um humor fino e sutil. Lembro de ouvi-lo dizer em aula que quando um casal vinha ao consultório de um terapeuta, era porque desejava permanecer junto, “senão iriam ao escritório de um advogado…” Em uma sessão familiar, afirmou ao casal parental que seria melhor poderem se entender ali mesmo, senão teria que encaminhá-los para uma outra terapia muito mais difícil, demorada e dispendiosa: a de casal.
É também de 2003 uma lembrança que entendo como bastante definidora de seu caráter: pedi-lhe um artigo para a nossa Revista do DOMUS, que ele passou a procurar logo (e que publicamos neste número, traduzido do inglês.) Selecionou alguns, e enfim, escolheu um artigo, que eu, ao receber, dei-me conta de ter outros dois autores. Perguntei-lhe se precisaria da autorização dos outros autores, ao que ele me respondeu, com um gesto de mão significando “não te preocupa”: “todo o autor tem interesse em ver seu artigo publicado em outro país”. Isto é o óbvio, mas é algo que em geral as pessoas calam. Era um movimento one-down , mas não parecia uma manobra. Mais que isto, acho que era algo que incorporara ao seu modo de ser – era seu estilo.
Transcrevo a seguir o depoimento de três pessoas que conviveram com Cecchin e a quem solicitei uma nota curta, informal, com impressões pessoais: Pietro Barbetta é docente na Universidade de Bérgamo e exerce funções de docência na Escola de Milão também, conhecendo Cecchin de longa data. O mesmo com relação a Gerry Lane, com quem Cecchin escreveu diversos artigos. Maria Lúcia Mendonça Coelho morou em Monza, perto de Milão, por quatro anos e neste período teve a oportunidade de freqüentar a Escola de Milão muitas vezes.
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¹Texto e tradução dos depoimentos de P. Barbetta e G. Lane por Nira Lopes Acquaviva.
Resumo: Gianfranco Cecchin era reconhecido internacionalmente por suas idéias inovadoras em psicoterapia, compreendendo-a como um processo de mudança na forma como os pacientes percebem seus desafios (problemas); e, também, como um processo de facilitar o aparecimento de oportunidades para o cliente assumir total responsabilidade pela criação de novas formas de viver: de aprender a amar a ambigüidade, a incerteza, a mudança constante e a verdade parcial e efêmera. Cecchin concebia a psicoterapia como um convite ao terapeuta à curiosidade com relação aos desafios dos pacientes; a ser neutro durante a hipotetização; permanecer humilde, incerto e flexível de forma paradoxalmente irreverente diante das ironias existenciais (evitando assim a arrogância); a ter uma atitude respeitosa diante dos desafios apresentados pelo cliente, enquanto atribui uma conotação positiva aos mesmos, e como um processo de des-construção composto de emoções muito rígidas para permitir o surgimento de emoções que despertem curiosidade em relação ao imprevisível, a evolução futura.
Abstract: Gianfranco Cecchin was internationally renowned for his innovative ideas on psychotherapy as a process of changing how patients perceive their challenges (problems), and of facilitating the opportunities for clients to assume full responsibility for creating their own, new, life-choices: to learn to love ambiguity, uncertainty, floating change and, partial and ephemeral truth. He viewed psychotherapy as an invitation to the therapist to be curious about their patients, of being neutral while hipothesizing, of remaining humble, uncertain and flexible while paradoxically irreverent towards life’s ironies (to avoid hubris); of having a respectful attitude toward the clients challenges while attributing positive connotation, and as a process of deconstruction of too rigid emotions to allow for the emergence of emotions of curiosity towards an unpredictable, evolutive future.
Consuelo Casula
Resumo: Os preconceitos dos terapeutas influenciam a forma como os sintomas são conceituados e tratados. Os problemas ocorrem quando os terapeutas deixam de reconhecer seus próprios preconceitos e o efeito deles sobre os clientes. O caso do adolescente John, de 16 anos, preso por fumar maconha na escola, ilustra como um enfoque não preconceituoso pode levar a uma evolução satisfatória do paciente.
Abstract: Therapist’s presuppositions influence how they conceptualize symptoms and treat them. Problems often occur when therapists fail to recognize their own biases and the effects of them on the clients. The case of the sixteen year old adolescent John, who was arrested for smoking marijuana in high school, illustrates how a non-biased approach can lead to a successful evolution of the patient.
Gianfranco Cecchin, Gerry Lane, Wendel A. Ray
Resumo: Este artigo traz algumas reflexões a respeito da forma como as crianças constroem seus modos de aprender, hoje, em uma sociedade caracterizada como pós-moderna e que traz como marcas importantes a velocidade e o excesso de informações. São discutidas algumas hipóteses que buscam estabelecer relações entre as vivências a que as crianças são expostas na família e na escola e o elevado número de diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade que temos constatado nos últimos tempos.
Abstract: This article brings some reflections in respect to the way children build up their learning behaviors today in a society caracterized as postmodern, with speed and information in excess as it’s greastest aspects. Some hypothesis are discussed to try to establish relations between the experiences that children are exposed to in childhood within their family environment and school and the high number of diagnostics of attention deficit / hyperactivity disorder which we have seen in recent years.
Ana Maira Zortéa
Resumo: Vínculo nem sempre representa o que há de melhor. Muitas vezes constitui-se e se mantém às custas de necessidades neuróticas compartilhadas e de legados transgeracionais desfavoráveis. A construção de bons vínculos, nestes casos, pode ser favorecida através de uma psicoterapia na qual o próprio vínculo pacientes-terapeuta seja cuidadosamente construído e devidamente examinado.
Abstract: A bond does not always represent what is best. Many times it is constituted and sustained by shared neurotics needs and undesirable transgenerational legacies. The building of healthy bonds, in those cases, can be facilitated by psychotherapy in which the patient-therapist link has been carefully built and exam.
Iara L. Camaratta Anton
Resumo: As intervenções do psicólogo clínico, geralmente, pressupõem a existência, não somente de uma problemática, mas, também, da presença de um paciente identificado. Este, precisa, no mínimo, estar disposto a comparecer nos atendimentos. Enquanto algumas abordagens avaliam um nível mínimo de motivação como um pré-requisito para o tratamento, a abordagem sistêmica trabalha com possibilidades de intervir com os recursos que se encontram disponíveis ao terapeuta. Este artigo trata-se do relato de um atendimento clínico realizado no DOMUS – Centro de Terapia de Família e Casal o qual a paciente identificada compareceu somente a três sessões, negando-se a seguir o tratamento. Através de algumas intervenções focais com o pai e madrasta da paciente foi possível promover mudanças na família, auxiliando-os a adotarem um novo modelo de relacionamento com a paciente identificada.
Abstract: The interventions of the clinical psychologist usually presuppose the existence of not only one problem but also the presence of an designated patient. The patient needs at least to predispose himself to come to the sessions. While some approaches evaluate a low level of motivation as one prerequisite to the treatment, the systemic approach works with possibilities of interviewing with the resources that are disposable to the therapist. This article is about a clinical treatment report placed at Domus (Couple and Family Therapy Centre). The designated patient came only to four sessions, negating herself to continue the treatment. It was possible to make changes in the family throughout some focal interventions with the patient’s father and step-mother and also help them to adopt a new model of relationship with the designated patient.
Patrícia Muller
Resumo: Em 1989, na Universidade de Buenos Aires, foi criado o Curso de Especialização em Violência Familiar. O curso inclui três atividades principais: docência, pesquisa e extensão universitária. Fazendo parte desta última área, temos assessorado e participado da criação de serviços comunitários para a atenção do problema, tanto na cidade de Buenos Aires, quanto em várias cidades do interior da Argentina e do Uruguai. Nesses serviços comunitários, em 1991, teve início um programa de recuperação de homens violentos. Baseados inicialmente no modelo canadense para o trabalho com grupos de homens violentos no contexto intrafamiliar, tivemos que adaptá-lo para viabilizá-lo em nosso contexto cultural. Neste texto, descrevemos a experiência no trabalho com grupos de homens que exercem distintas formas de violência no contexto doméstico, com ênfase nas dificuldades encontradas e nos êxitos obtidos.
Abstract: The article describes a treatment program in Buenos Aires for men who batter women. Topics addressed include program description, program goals, program structure, synopsis of treatment, and treatment model. It is stated that male perpetrators of various forms of domestic violence must be treated in groups that meet in public or institutional spaces, using a specific intervention model.
Jorge Corsi
Resumo: O artigo propõe que o referencial teórico sistêmico, como área de conhecimento teórico e prático com casais, pode assumir importante papel no enfrentamento da epidemia da AIDS. O arcabouço teórico e clínico que embasa as terapias de casal possibilita o desenvolvimento de intervenções necessárias para a superação de impasses já diagnosticados nas abordagens preventivas à infecção por HIV em relacionamentos estáveis. Está organizado em três partes: inicialmente são apresentadas algumas das possibilidades do olhar sistêmico sobre o relacionamento conjugal; a seguir são discutidos aspectos centrais das abordagens preventivas mundialmente utilizadas para a prevenção, pontos de intersecção com relacionamentos estáveis e a questão do sexo mais seguro; e após são levantadas sugestões para aproximação do foco conjugal às intervenções preventivas, também em políticas públicas.
Abstract: The article suggest that Systemic Approach, as theoretical and practical knowledge area in couples therapy, may assume important role in the confrontation of AIDS epidemic. Clinical and theoretical approach forbases couples therapies makes possible interventions development for the overcoming of already diagnosed impasses in HIV infection preventive boardings in steady relationships. It is organized in three parts: initially some possibilities of Systemic Approach on the conjugal relationship are presented; then preventive boardings world-wide used are discussed in connection with steady relationships and safer sex question; and after preventive interventions are discussed in terms of their focus on conjugal relationship, also in public politics.
Lirene Finkler