Cálice! O Valor de Uma Psicoterapia Arqueológica

Na metade do século XV, a pedido das cortes italianas, sopradores de vidro da ilha de Murano, Veneza, começaram a fabricar um pequeno objeto que ajudaria a definir o conceito de civilidade. Esses chamados “cálices de pedestal”, frágeis e adornados precursores dos cálices ainda utilizados hoje, serviram fins estéticos assim como comportamentais.

Homens, principalmente, tiveram que aprender a controlar seus corpos à mesa para não quebrá-los e derramarem suas bebidas. Como explica uma historiadora da arte, “Lidar com um cálice sofisticado em público colocou uma série de desafios que tornaram visível a autodisciplina exigida da nobreza” (Rihouet, 2013, p. 133)[1]. Até então copos eram feitos de materiais mais resistentes como metal ou madeira e não tinham haste – ou seja, não requeriam destrezas especializadas pois tão pouco podiam ser segurados de múltiplas formas.

Curiosidades como esta sobre o surgimento da etiqueta moderna exemplificam o seguinte: as coisas materiais e mundanas com as quais interagimos diariamente condicionam nossas opções de comportamento. Um fato “óbvio”, mas cuja importância para nossa vida mental pode ser negligenciada na correria e estresse do dia-a-dia.

O que eu proponho aqui é a prática de uma atenção arqueológica para nossas vidas (ou seja, voltada para a cultura material que navegamos diariamente). Quais são as coisas que percebemos à nossa volta? Que objetos utilizamos corriqueiramente?

O potencial terapêutico e reabilitativo dessa mentalidade não deve ser ignorado. Nós temos o poder de mudar não somente de arredores, geograficamente falando, mas também de mudar significativamente as coisas que constituem os nossos arredores agora mesmo.

Até aqueles que por alguma limitação física não possam pessoalmente mover as coisas ou arranjar outras novas, talvez possam pedir ajuda de alguém. Podemos ser designers, artistas, arquitetos dos nossos espaços e objetos particulares, da nossa cultura material pessoal.

A remodelagem dos espaços (quartos, salas, cozinhas, etc.) por meio da reorganização, subtração e/ou adição de móveis e objetos menores tem um impacto muito mais forte no comportamento do que se imagina. Isso porque as condições materiais ao nosso redor – como qualquer arquiteto sensível aos efeitos de seu trabalho sabe – ditam a forma na qual interagimos com o mundo.

Quer começar a beber mais água para se hidratar mais? Arranje uma garrafa reutilizável (isso também gera menos louça para lavar). Quer comer menos? Use pratos menores. Use um gravador ou um pequeno bloco de notas para anotar coisas ao longo do dia e lembrar mais tarde. Os objetos que utilizamos determinam a forma na qual nos relacionamos até com nós mesmos.

Mais uma breve história e depois encerro a reflexão. Quando me mudei de volta para a casa onde cresci depois de passar anos no exterior, eu movi minha cama de lugar. Ela ficou mais longe do ventilador de teto, mas mais perto da janela (de forma que pudesse olhar as estrelas à noite); tapou uma tomada, mas abriu mais espaço na frente da porta de entrada (onde pude colocar uma cadeira). Por mais de uma década a cama havia permanecido no mesmo lugar, mas agora era como se tivessem reformado o próprio quarto na minha ausência e enquanto eu reformava a minha identidade lá fora.

A cultura material que nos cerca, os objetos à nossa volta, influenciam nossas atividades externas e internas. Porém, nós também podemos influenciar essas coisas com nossas ações – e essa é uma das pequenas belezas de ser um humano autoconsciente.

Referências
Rihouet, P. (2013). Veronese’s Goblets: Glass Design and the Civilizing Process. Journal of Design History, 26(2), 133–151.

– João Pedro Martins Pinheiro
(BA em Psicologia e Sociologia pela Drew University)

[1] Todas citações são traduções livres do autor.