Capitão Fantástico

Como criar uma família?

Isolados na floresta de pinheiros do estado de Washington, noroeste dos EUA, Ben Cash, Leslie e seus seis filhos de 5 a 18 anos vivem uma rotina à base da caça, coleta, estudos científicos e literários, exercício físico e música[1]. Isso muda quando a mãe (distante, internada numa clínica psiquiátrica há 3 meses) se suicida. Os filhos, então, convencem Ben a ignorar as ameaças do sogro rico de mandar prendê-lo e a levá-los numa missão para ver e resgatar o corpo de Leslie e honrar a vontade dela ser cremada como budista (não enterrada como cristã).

A aventura de múltiplos dias pela civilização moderna capitalista, marcada por encontros com membros da família estendida, coloca a ideologia e estilo de vida dos Cash à prova e força Ben à enfrentar acusações de negligência infantil e culpa pela deterioração da saúde mental de sua falecida esposa. No final, o pai da família reconhece seus radicalismos e erros e completa um arco de transformação (ilustrado pelo fato de que ele matricula os filhos numa escola e a família se muda para um sítio mais perto da civilização).

Segundo Susan Walker, professora de ciências sociais da família na Universidade de Minnesota, “[n]as suas mensagens sobre escolhas, desafios, reflexão e redenção, Capitão Fantástico [Ross, 2016] oferece uma lição poderosa de que a jornada parental é repleta de humildade e crescimento” (2017, p. 639)[2]. Nesse espírito, aponto algumas formas nas quais o filme nos convida a refletir sobre uma série de questões interligadas pertinentes à vida em família. P. ex., como devemos criar uma família? Por que criar uma família? Para que ela serve? Que responsabilidades possuem seus diferentes membros? E quais as consequências, na vida dos filhos, das nossas respostas a tais perguntas?

Um dispositivo temático poderoso que a obra utiliza é o de mostrar que nem uma utopia está imune aos desafios do convívio familiar. Quer dizer, no início, vê-se que o filme “retoma algumas noções de movimentos hippies thoreaunianos, que pensaram em uma insurgência ao sistema socioeconômico por meio da fuga das cidades e da vida autossuficiente em meio à natureza” (Kussler & Van Leeuven, 2019, p. 365). Entretanto, o que estimula o espectador a refletir são justamente as contestações (tanto da irmã e do sogro de Ben quanto de alguns dos filhos) ao utopismo da família Cash no geral e de seu patriarca em particular.

Essa família, afinal, celebra o aniversário do linguista e anarco-sindicalista Noam Chomsky como se fosse natal (com distribuição de presentes e canções temáticas), frequentemente citam conceitos marxistas e criticam a religião organizada[3]. Mas a obra não é necessariamente conivente com tudo isso: ela oferece espaço para antíteses se manifestarem.

Na cena em que eles recebem seus presentes (facas de combate e arco-e-flechas) pelo Chomsky Day, Rellian de 12 anos reclama: “Que tipo de pessoa maluca celebra o aniversário de Noam Chomsky como se fosse um feriado oficial?! Por que não podemos celebrar o natal como o resto do mundo?” A resposta de seu pai (“Você preferiria celebrar um elfo mágico fictício ao invés de um humanitário vivo que fez tanto para promover direitos humanos?”) vem acompanhada, também, de um convite para que o menino defenda seu argumento. Claramente, contudo, “[o] tom emocional do convite para debaterem parece mais como um desafio. Isso pode ser a resposta não-tão-sútil de Ben aos desafios normativos à sua autoridade parental de quando suas crianças buscam ação e um senso de identidade separado [do seu]” (Walker, 2017, p. 638). A nuance está na dissonância entre o convite aparentemente justo e sensível versus o comentário zombeteiro de Ben e o enquadramento (em termos cinematográficos) de Rellian sozinho de um lado e seu pai e todos seus irmãos do outro.

O estilo parental autoritário[4] de Ben, às vezes disfarçado de autoritativo/participativo graças ao seu incentivo verbal ao debate e racionalismo, é um reflexo do seu sonho de criar pessoas excepcionais para o mundo (Walker, 2017, p. 637). “A ironia aqui, [porém], é que Ben está criando seus filhos para questionar o status quo, a não engolir qualquer informação indiscriminadamente, mas ele constrói um ambiente onde questionar sua autoridade é impossível” (O’Malley, 2016). Quando rebeldias ocorrem (e elas são sempre agressivas em função da ausência de canais de comunicação claros), o patriarca sente-se traído.

Por exemplo, quando Bodevan (18) mostra suas cartas de admissão nas universidades mais seletivas dos EUA, Ben não responde com orgulho, mas sim com desgosto pelo fato do filho estar secretamente buscando uma educação formal que ele desaprova (“Você fala quatro línguas. Matemática avançada! Física teórica! O que eles podem te ensinar lá?”). Bodevan, já parcialmente traumatizado pela sua incapacidade de interagir com mulheres mais cedo no filme[5], finalmente se rebela: “Eu só quero ir para a faculdade. […] Nós somos aberrações! Você nos tornou aberrações. A menos que tenha saído de um livro, eu não sei de NADA!” Em outras palavras, por mais que as crianças Cash estejam em sintonia com a natureza, seus próprios corpos e os mais sofisticados conhecimentos da humanidade[6], eles não sabem se relacionar com pessoas de fora.

Ben eventualmente muda seu estilo parental de autoritário para autoritativo (Walker, 2017, p. 639) e faz demonstrações claras de afeto e respeito genuíno pelas vontades dos filhos de, p. ex., fazer parte do resto do mundo. O principal antagonista da história, seu sogro Jack, inicialmente caracterizado como um homem rico e grosso que chama Ben de hippie e ameaça mandar prendê-lo, torna-se essencial no amadurecimento do protagonista. Ele mostra-se um avô sensato e preocupado no último terço do filme ao irritar-se porque Rellian se machucou escalando na chuva com Ben, quem também “deu aos [s]eus netos armas de verdade” (ver clipe da cena em Mortenssen & Langella, 2016). A obra portanto perfeitamente reproduz a realidade de que “a família estendida ocupa o papel fundamental de confrontante, sendo espelho e primeira instância crítica dos ‘comportamentos’ da família nuclear” (Perazzolo & Pereira, 2008, p. 527). Depois da série de confrontos, e servindo de prova final de que algo não estava funcionando, Vespyr, 14, fere-se gravemente escalando um telhado para “resgatar” Rellian, contra a sua vontade, de seus avós a mando do pai.

Capitão Fantástico é uma mistura de ‘dramédia’ familiar com história de viagem e amadurecimento onde pessoas tornam-se melhores pais, avós, tios, filhos, sobrinhos e netos. É um filme riquíssimo tanto de conflitos verossímeis quanto de momentos divertidos e emocionantes. Qualquer espectador poderá se relacionar com alguma situação e/ou personagem na história e, assim, utilizar dela como um ponto de partida para imaginar novas formas de pensar famílias.

Elenco:
Viggo Mortensen as Ben
George MacKay as Bodevan
Samantha Isler as Kielyr
Annalise Basso as Vespyr
Nicholas Hamilton as Rellian
Shree Crooks as Zaja
Charlie Shotwell as Nai
Trin Miller as Leslie
Steve Zahn as Dave
Kathryn Hahn as Harper
Ann Dowd as Abigail
Frank Langella as Jack

 

Referências

Assessoria de Comunicação Social. (2019, April 12). Bolsonaro assina projeto que regulamenta educação domiciliar. Ministério da Educação – Educação Básica. http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/211-218175739/75061-educacao-domiciliar

Captain Fantastic Movie CLIP – Crossbow (2016)—Viggo Mortensen Movie. (2016, July 25). https://www.youtube.com/watch?v=jYRuG6dvy6g

Kussler, L. M., & Van Leeuven, L. G. (2019). Walden, desobediência civil no Brasil e capitão Fantástico: Uma análise conceitual, fílmica e textual. Revista Novos Rumos Sociológicos, 7(12), 364–383.

O’Malley, S. (2016, July 8). Captain Fantastic. RogerEbert.Com. https://www.rogerebert.com/reviews/captain-fantastic-2016

Perazzolo, O. A., & Pereira, S. (2008). Família estendida: Teorizando sobre sua importância no desenvolvimento da família nuclear. International Journal of Developmental and Educational Psychology, 4(1), 523–529.

Ross, M. (2016). Capitão Fantástico. Bleecker Street.

Schavarem, L. do N., & Toni, C. G. de S. (2019). A relação entre as práticas educativas parentais e a autoestima da criança. Pensando Famílias, 23(2), 147–161.

Tracey, H. N. (2017). Captain Fantastic: The unofficial reading list. Hint of Film. https://www.youtube.com/watch?v=mbpd3R33Hww

Walker, S. K. (2017). Captain Fantastic: Road trip to redemption. Journal of Family Theory & Review, 9(4), 634–640.

João Pedro Martins Pinheiro (BA em Psicologia e Sociologia pela Drew University)

[1] Ao contrário do Brasil, educação domiciliar, “uma modalidade de ensino em que pais ou tutores responsáveis assumem o papel de professores dos filhos” de acordo com o Ministério da Educação (Assessoria de Comunicação Social, 2019), é permitido por lei.

[2] Todas citações de obras em inglês são traduções livres do autor.

[3] O quanto disso é fruto de uma doutrinação cega é discutível. Uma crítica de cinema em particular, O’Malley (2016), imediatamente discorda de tudo que ela vê na tela: “Ele trata seus [seis] filhos como se fossem recrutas militares (e, também, como doutorandos). Porque eles são crianças, e porque eles estão isolados de outras influências, eles devolvem para ele [Ben] suas palavras como papagaios, eles compartilham de sua visão de mundo sem questionar. É Família como Culto.” Já Walker (2017, p. 636) consegue destacar as vantagens na filosofia parental de Ben: “Se eles hão de ser filósofos-reis [à imagem d’A República de Platão], eles precisam valorizar aprendizado e verdade para ser moral e intelectualmente superiores e para não serem corrompidos pelo homem ou sucumbirem às forças da natureza, e também para promover uma sociedade justa e equitativa.”

[4] Na psicologia, estuda-se três grandes tipos de estilo parentais (classificados em termos de exigências e responsividade para com os comportamentos apresentados pelo filho e as necessidades que estes indicam): (a) autoritário, (b) autoritativo/participativo e (c) permissivo (ver Schavarem & Toni, 2019).

[5] Comparando a cena de abertura do filme em que Ben declara que Bodevan tornou-se um homem porque ele, sozinho, caçou e matou um veado para eles comerem com a cena em que o rapaz é quase paralisado pela presença de uma mulher da sua idade, começamos a entenders os limites da educação que o pai havia dado até então.

[6] Para uma lista completa das diversas referências culturais feitas no filme consultar o vídeo Captain Fantastic: The Unofficial Reading List (Tracey, 2017) no youtube.com.